Em muitas democracias, a crescente disparidade de riquezas tem se revelado como um fator de desequilíbrio. Por este motivo, às vezes precisamos desviar nossa atenção do enfoque exclusivo na realidade individual e passarmos a adotar uma visão mais ampla da riqueza comunitária.
Para explorar essa mudança, a Forbes publicou a entrevista de Asier Ansorena, da organização Ashoka, com Joaquim de Melo, o visionário por trás do Banco Palmas, o primeiro banco comunitário do Brasil, fundado há 25 anos. Nessa conversa, ele compartilha como desenvolveram uma moeda alternativa para construir e preservar a riqueza da comunidade em Fortaleza e como esse movimento cresceu para se tornar uma rede nacional com 150 bancos comunitários, os quais mobilizam e redistribuem anualmente 1,5 bilhão de reais nas economias locais.
Ansorena iniciou o diálogo questionando sobre a pergunta que mudou a vida de Joaquim, que morava nas favelas do Nordeste do Brasil, treinando para ser padre. “Quando cheguei ao Conjunto Palmeiras em 1974, a ditadura militar havia deslocado todo o bairro. Então começamos construindo escolas, creches e mercados locais do zero. Mas mesmo depois de todo esse desenvolvimento, ano após ano, o bairro continuou muito pobre“, Joaquim relembrou.
O ponto de viragem ocorreu quando perguntámos: ‘Porquê?’ Por que não conseguíamos consolidar a riqueza, com tanta gente trabalhadora, escolas, creche e saneamento? E percebemos que era porque todo o nosso dinheiro estava saindo do bairro. Estávamos dando para grandes lojas e grandes bancos, em vez de produzir localmente. Percebemos que a chave para derrotar a pobreza era começar a investir em nós mesmos. E foi assim que nasceu o Banco Palmas, nosso banco comunitário.
Joaquim, em seguida, explicou o que é um banco comunitário. Segundo ele, trata-se de uma instituição bancária sem fins lucrativos, direcionada para o fomento de empreendimentos locais e a criação de uma moeda de circulação restrita. São oferecidos empréstimos com taxas de juros extremamente acessíveis, e quaisquer ganhos são reinvestidos em novos empréstimos para empresas locais. Sobre o Banco Palmas, Joaquim afirmou que representa uma abordagem econômica inovadora e utiliza a riqueza gerada pela comunidade para fortalecer a economia local.
Ansorena indagou qual seria a razão de criar um banco comunitário em vez de solicitar uma agência local de um banco público. Segundo o cearense “o grande problema no Brasil é que os bancos comerciais sugam riqueza como um aspirador de pó. Inicialmente, os cartões de crédito eram vistos como um recurso nas comunidades pobres. Quando as empresas locais faliram e as pessoas não conseguiram obter empréstimos, tiveram de comprar a crédito. Contudo, como os bancos cobravam taxas de juro muito elevadas, até 20%, as pessoas ficaram endividadas e empobrecidas“.
Quando você compra com cartão de crédito, eles cobram dos comerciantes uma taxa de 2 a 3%. Então eles pegam esse dinheiro e investem em grandes corporações e bairros ricos. Os comerciantes locais perdem dinheiro e as grandes corporações ficam mais ricas. Então porque não ter o nosso próprio banco, onde você empresta a taxas de juros muito baixas para reinvestir localmente?
Com isto, Ansorena relembrou a crise financeira europeia de 2008, quando o Banco Central Europeu não colocou dinheiro nas contas das pessoas ou emprestou diretamente aos governos, e destinaram 800 mil milhões de euros para bancos privados, excluindo a oportunidade de investir em pequenas e médias empresas que impulsionariam as economias locais. “Os bancos foram feitos para cumprir uma função social, mas não o fazem, certo?“, questionou o entrevistador. “Certo. Isto porque a maioria dos bancos procura obter lucros cada vez maiores, em vez de se concentrar na construção de capital produtivo. Uma empresa que quer ir ao banco fazer um empréstimo para produzir roupas, sapatos, alimentos, não pode porque o banco prefere colocar dinheiro na bolsa“, concordou Joaquim.
O cearense revelou que sofreu processo do Banco Central do Brasil duas vezes, que alegou que o banco comunitário era ilegal. Joaquim e seus colegas foram presos e posteriormente à Justiça para conquistar o direito de operar. Em 2010, o Banco Central reconheceu que cometeu um erro e emitiu duas notas técnicas ao país, dizendo que o banco era importante para o Brasil e melhorou vidas.
Ansorena: Como entram em jogo as vastas disparidades econômicas em diferentes regiões do Brasil? Os relatórios mostram que os bancos privados, incluindo alguns públicos, retiram regularmente as poupanças dos nortistas mais pobres e reinvestem no sul rico.
De Melo: É exatamente isso que acontece. Mas os bancos comunitários estão a desafiar o seu modelo. Em 2022, os bancos comunitários circularam bilhões de reais. Tivemos 1,5 mil milhões de reais (300 milhões de dólares) em receitas, e esse dinheiro foi reinvestido na produção e distribuído por 152 bancos comunitários, pagando tudo, desde painéis solares a empréstimos para empresas locais, como barbeiros ou lojas de roupa. Isto já não é uma utopia; isso está funcionando.
Ansorena: Há vinte e cinco anos você criou a primeira moeda social tangível, as Palmas, e agora ela se tornou digital. Conte-nos sobre isso.
De Melo: Originalmente inventamos a moeda de Palmas para estimular os gastos locais. Era lastreado em reais, portanto, se um comerciante quisesse, ele poderia converter essa moeda social novamente em reais por uma pequena taxa, que seria alimentada pelo fundo de investimento do banco. Depois, em 2013, convertemos para uma plataforma digital, e-Dinheiro Social, que se traduz em Social e-Money. O que é fundamental para a nossa metodologia é que cada banco permaneça hiperlocal. Cada banco comunitário atua em um território ou bairro. Você baixa o aplicativo, pesquisa dentro do seu município e, se lá houver banco, você pode se cadastrar, fazer a transferência e começar a comprar nos comerciantes. Mas se você sair do seu município, o seu saldo é encerrado, porque a moeda foi projetada para estimular uma área geográfica específica. O objetivo é incentivá-lo a comprar localmente.
A partir de 2017, ouvimos prefeitos brasileiros dizerem: “Rapaz, a economia municipal está realmente se desenvolvendo, estamos vendo muito mais prosperidade”. Então, alguns prefeitos fizeram parceria conosco e, através de leis municipais, os prefeitos estão criando bancos comunitários e moedas sociais. Já são dez municípios no Brasil que tiraram seu dinheiro dos grandes bancos tradicionais e estão criando moedas sociais, usando o nosso plataforma digital.
Ansorena: Como é que os bancos comunitários capacitam as pessoas para se tornarem prossumidores, ou seja, pessoas que produzem e consomem para estimular a economia local? Que educação financeira ainda é necessária nas comunidades historicamente marginalizadas?
De Melo: O mundo diz aos pobres que eles deveriam se sentir sortudos por comprar produtos de grandes corporações, por serem empregados e por terem um patrão. O Banco Comunitário oferece outro caminho a seguir: ser um empreendedor e um prosumidor.
A educação financeira deve ensinar as pessoas a organizar as suas finanças, mas também a ganhar dinheiro produzindo, consumindo e gerando recursos na sua própria comunidade. O empreendedorismo é uma coisa boa. Desde que as pessoas coloquem na cabeça que isso deve ser feito a serviço do coletivo. Não pense nisso de uma perspectiva individualista.
Joaquim de Melo também é dramaturgo, e falou sobre a importância da educação financeira dentro da cultura. De acordo com o cearense, toda mudança e consenso coletivo vem da cultura. No Conjunto Palmeiras são realizados teatro de fantoches, dança, fotografia, histórias em quadrinhos e rádio comunitária em virtude da educação de pessoas sobre a economia local. “A cultura também é o que alimenta a nossa missão: comer, conviver, dançar, cerveja e pagode. É essa cultura local que me inspira“, relatou.
Ansorena: Esse movimento em direção a uma cultura econômica diferente não é apenas um objetivo dos Bancos Comunitários ou uma questão brasileira, não é?
De Melo: Felizmente, é um objetivo compartilhado por muitos no Brasil e no mundo que estão construindo novas alternativas econômicas – sejam eles líderes da economia solidária, da economia verde, da economia circular, de bancos comunitários e muito mais. Ainda na semana passada estive em Brasília para o lançamento de uma nova iniciativa nacional: o Comitê Estratégico Nacional para a Economia de Impacto. Nossa missão é reunir todos esses movimentos para coordenar ações nacionais e novas políticas públicas com líderes empresariais, da sociedade civil e do governo. Encontrei-me lá com Muhammad Yunus, o vencedor do Prémio Nobel da Paz do Bangladesh e arquitecto global para o microcrédito. Ele ressaltou a importância da construção de um novo modelo econômico global e elogiou o Brasil por sua liderança. Temos uma oportunidade única de construir esse futuro.
*Com informações da Forbes