Quando Celso Athayde decidiu ampliar os serviços prestados pela Central Única das Favelas (CUFA), tentou criar um banco para a população residente desses territórios. Há cerca de 10 anos, a instituição lançou um cartão de crédito, mas o projeto parou nesse estágio por falta de tecnologia. Uma década depois, ele conseguiu retomar a iniciativa e está lançando o F Bank, ao lado de José Renato Hopf, fundador da GetNet e do Grupo Four.
A instituição financeira pretende promover a inclusão socioeconômica de 17 milhões de pessoas que atualmente vivem em favelas no Brasil. Para isso, Athayde aposta na relação próxima entre a comunidade, com gerentes conhecidos da população local, e taxas mais baixas. Para este ano, a estimativa é que as favelas movimentem R$ 220 bilhões na economia, segundo o Data Favela.
Os testes já se iniciaram – com mais de 30 mil clientes cadastrados –, mas o F Bank tem previsão de entrar oficialmente em operação em setembro, a depender das regulamentações do Banco Central.
O fundador da CUFA e da Favela Holding escolheu o South Summit Brazil, realizado até esta sexta-feira (22/3) em Porto Alegre, para anunciar a novidade. O F Bank tem um estande próprio no evento, onde Athayde já recebeu investidores nacionais e internacionais interessados em aportar capital na empresa.
“Essa integração entre o capital da favela e do asfalto é essencial. O que provocamos com a nossa vinda para cá é mostrar que não precisamos apenas distribuir serviços das grandes empresas, podemos ser sócios delas. Não quero que a favela apenas consuma, mas que faça gestão do que consome”, afirmou em entrevista exclusiva a PEGN.
Leia abaixo os principais trechos da conversa:
Vocês estão presentes com um estande em um evento de tecnologia e inovação. Qual foi a estratégia por trás desse pré-lançamento no South Summit Brazil?
O preto foi criado para entender que o lucro é pecado. Você acaba sendo convencido, como uma religião, de que não precisa de dinheiro, só ser feliz. A prerrogativa vem do asfalto. A gente quer abundância, a escassez a gente já tem. Você transformar essa lógica em fato não é uma coisa simples porque mexe na espinha dorsal, no sentimento dessas pessoas. Eu queria democratizar a riqueza, não queria cantar desgraça. Quando eu escolho espaços como esses é para estar onde normalmente não somos convidados, percebidos, são eventos com tíquete caro e somos percebidos como garçons, seguranças, não empreendedores. Estar em eventos, ações, espaços onde estão as pessoas que têm o capital é algo lógico. Eu só vou conseguir desenvolver as minhas iniciativas quando eu estiver perto de quem pode investir nos nossos negócios. Essa integração entre o capital da favela e do asfalto é essencial. O que provocamos com a nossa vinda para cá é mostrar que não precisamos apenas distribuir serviços das grandes empresas, podemos ser sócios delas. Não quero que a favela apenas consuma, mas que faça gestão do que consome.
Tivemos inúmeros neobancos e fintechs, com o discurso de preencher gaps, sendo criados nos últimos anos, mas poucas iniciativas destinadas a esse público. Queria que falasse sobre a potência consumidora da favela.
A gente começou como organização CUFA há quase 30 anos, mas nunca gostei de trabalhar como filantropia. Eu não quero dar cesta básica para ninguém, morei na rua durante seis anos, morei em abrigo público por dois anos. Dar comida pra alguém é demarcar uma linha entre quem está no abismo e você. Eu não pensei na CUFA como instituição social para dar isso, mas para levar o entendimento do quanto as pessoas da favela poderiam empreender e diminuir as desigualdades sociais gerando renda e riqueza naquele lugar.
Essa não é a sua primeira iniciativa financeira. Há cerca de 10 anos, lançou o CUFA Card. Como essa experiência te trouxe até o momento atual?
Começamos a pensar em como poderíamos desenvolver mais ações e mais iniciativas que pudessem tanto mobilizar quanto abrir portas para as pessoas. A gente reclamava que as pessoas não conheciam a linguagem dos bancos, sempre víamos banco como um bando de ladrões que iam roubar o dinheiro. Quando eu pensei em fazer o CUFA Card, ia ser uma explosão, mas eu tinha dois gargalos. Um que eu sempre tive, de gestão, porque eu faço gestão de favela e não de empresas, isso é com meus sócios. E outro gargalo de tecnologia. Meu parceiro na época dizia que a tecnologia viria adiante, eu não tinha muita informação. Então, eu parei de fazer e resolvi voltar quando tivesse a tecnologia certa. Quando chega a pandemia, mobilizamos R$ 1 bilhão, eu precisava de muita gestão e tecnologia para fazer iniciativas como reconhecimento facial, e conheci o Zé Renato da 4all, que montou a GetNet e entende de tecnologia específica para aquele negócio que eu tinha lá atrás e deixei num canto. Começamos a costurar o banco, que precisa ser quase perfeito, porque, no nosso caso, a gente está na favela, que tem seus próprios julgamentos, seu próprio fórum. Não dá para colocar expressões que as pessoas não entendam ou que possam significar várias coisas. Se você quer dinheiro emprestado porque sua filha vai fazer 15 anos, você não vai estudar, você precisa do dinheiro amanhã.
O investimento inicial veio de onde?
Precisava de R$ 50 milhões a R$ 70 milhões, em três anos. Fui para a casa do Abílio Diniz, na Itália, e jantei com o André Esteves [um dos fundadores do BTG Pactual]. Contei a história e a minha capacidade de entrega. O ecossistema está pronto, estou plugando mais uma ação dentro dele. Ele afirmou que ia aportar depois que todos os estudos fossem vistos. Montamos o business plan, eles bateram os números, questionaram tudo, comecei a entender menos das reuniões, mas eles se tornaram os parceiros do projeto. Então consegui o que precisava: alguém que entendesse de tecnologia e alguém do mercado, de banco, que entendeu que a gente necessitava abrir mão de certos lucros, que precisamos oferecer o melhor preço.
Como será feito o atendimento? O banco será 100% digital?
Teremos 5 mil gerentes. Cada favela terá o seu. Já temos quase 500 agências de vendas de passagens aéreas, o que estou fazendo é colocar mais uma atividade naquela favela, no mesmo espaço físico em alguns casos. Como não tem volume de dinheiro físico, em todas as transações daquela favela o gerente ganha comissão e parte desse volume fica para a região. Se houver inadimplência, será abatido desse valor. Uma coisa que a gente já sabia e foi confirmado por pesquisas do Data Favela é que eles têm contas bancárias porque precisam ter. Com a gente, o gerente será o seu vizinho, se tiver algum problema, você vai na casa dele e resolve. Com parte desse dinheiro você reforma o campinho de futebol, pinta a escola. Tudo que tem no outro [banco], o nosso tem. Te garanto que muitas pessoas vão fazer a opção de vir pro F Bank.
Vocês já conseguiram todas as aprovações com o Banco Central?
Uma coisa que somos obrigados em contrato com o BTG é que temos que ser um banco oficial, então demos entrada em março do ano passado com o Banco Central e agora isso começou a correr. Nosso cálculo é que em setembro devemos ter o lançamento oficial. Ao mesmo tempo, vamos ser um marketplace com muitos serviços de outros parceiros, com taxas mais baixas para aquele público, com geolocalização, sem prostituir o mercado, com serviço mais em conta para empreendedores daquele território.
O empreendedor tem dificuldade no acesso ao crédito. Como vai funcionar? Vocês pretendem fornecer crédito diretamente ou via parceiros?
De várias formas. Estamos entrando em contato com muitos potenciais parceiros, como BNDES e instituições de governo. A gente não vai fazer doação de dinheiro, o banco precisa sobreviver. Teremos critérios, mas seremos flexíveis. Não temos inadimplência na venda de passagens aéreas, por exemplo, então entendemos que se escolhermos bem os nossos gerentes, teremos uma relação coletiva, local, direta entre as pessoas. A gente não só vai ter o melhor preço, vamos ter uma inadimplência baixa porque um coletivo vai se responsabilizar por ela – você não vai estar devendo o banco, estará devendo ao seu vizinho, é outra lógica. A gente aplica essa lógica para vários outros serviços.
Fonte: Pequenas Empresas, Grandes Negócios