A aprovação nesta quinta-feira (21) pela Câmara dos Deputados do projeto que cria o mercado de carbono regulado no Brasil foi encarado, por especialistas, como um passo importante para o país avançar, ainda que não seja o melhor texto e deixe conceitos passíveis de múltiplas interpretações. A matéria ainda precisa passar pelo Senado Federal no ano que vem e retornar, para o último aval, à Câmara dos Deputados.
O texto determina que empresas que emitam a partir de 10 mil toneladas de gás carbônico equivalente (CO2e) por ano devem submeter um plano de monitoramento das emissões que será submetido à avaliação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), mecanismo criado pelo projeto de lei. O plano precisa incluir as ações que serão tomadas para reduzir e remover gases de efeito estufa da atmosfera, além do próprio relatório de emissões.
Já quem emite mais de 25 mil toneladas de CO2 equivalente por ano estará sujeito a multas e deverá compensar o prejuízo comprando créditos de carbono no mercado ou cotas de empresas que não atingiram seu limite. Também terão de enviar um relatório que conste a “conciliação periódica de obrigações”.
“É uma legislação histórica em termos de descarbonização para o país”, diz Annie Groth, líder de Advocacy e Engagement da Biofílica Ambipar, empresa que administra projetos de carbono. “É a primeira vez, desde a criação da Política Nacional sobre a Mudança do Clima (Lei no 12.187/2009), que a gente conseguiu caminhar com uma legislação que trouxesse um plano de redução de emissões para diversos setores”, acrescenta.
Ela destaca que a legislação, se aprovada, também incentiva projetos de conservação, restauro e outros que podem reduzir ou remover carbono. Isso é muito importante, diz, “dado contexto brasileiro”, que tem mais da metade das emissões proveniente de desmatamento, degradação florestal e de mudança no uso do solo.
Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases do Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG), as mudanças do uso da terra, que tem ligação com desmatamento para pastagens e plantações, foram responsáveis por 48% do total de emissões de gases em 2022, enquanto a agropecuária foi o segundo setor mais poluente, com 27%.
Groth também vê o copo meio cheio ao lembrar que poderia ter sido uma legislação focada apenas nos setores mais emissores, mas que acabou permitindo a criação de oportunidades para tratar o problema maior do quadro de emissões do Brasil, que é a questão florestal.
Para João Eduardo Diamantino, sócio do Diamantino Advogados Associados, a regulação de emissões da agropecuária é uma discussão importante, mas que deve ser feita com tranquilidade. “Enquanto não houver mecanismos claros para quantificar as emissões, a exclusão das atividades do agronegócio é uma medida que evita novos encargos para o setor, que já lida com desafios da reforma tributária e regulatórios”, diz.
Felipe Bittencourt, CEO da WayCarbon, empresa de soluções para descarbonização, diz não ver problema em seguir sem o agro no mercado de carbono regulado. Argumenta que isso também aconteceu em outros países. “É um setor que está menos preparado em termos de gerenciamento de emissões, as quais são sim mais complexas de se calcular que em outros setores”, aponta. E lembra que o setor poderá desenvolver projetos para o mercado voluntário.
Sobre o texto do projeto de lei de forma geral, Bittencourt, cuja empresa gerencia projetos de carbono, destaca que é uma tendência global e muitas empresas, principalmente as de grande porte e multinacionais, já fazem inventários de carbono e usam verificação externa independente. Lembra ainda que algumas inclusive precisam disso para conseguir exportar para algumas regiões, como a União Europeia. “Além disso, muitas empresas já estão, inclusive, na frente da legislação, tendo assumido compromissos “net zero “[zerar as emissões líquidas]. Algumas com prazos até mais curto [2040] que a NDC Brasileira [2050]”, comenta.
Annie Groth acredita que a legislação vai criar incentivos e maior segurança jurídica para os investimentos em projetos do tipo. Ela lembra que a regulamentação das emissões é uma tendência mundial e que empresas exportadoras para a União Europeia, por exemplo, já precisam enfrentar, com a promulgação do CBAM, Carbon Border Adjustment Mechanism, que cobra tarifas extras de produtos intensivos em emissões. “Se a indústria brasileira não tiver preparada, com estratégias de baixo carbono, vai perder oportunidade de exportação”, diz.
Para Isabela Morbach, advogada e cofundadora da CCS Brasil, organização sem fins lucrativos que estimula a cooperação para a descarbonização da economia brasileira, do ponto de vista das empresas e das indústrias, o avanço da aprovação é positivo, ao sinalizar que o tema está avançando e há interesse em aprovar a criação do mercado regulado de carbono o mais rápido possível. Mas ela ressalta que, por trazer temas novos e pouco debatidos, “pode trazer algumas inseguranças”.
“Um exemplo é que o projeto do Senado definia que o projeto se aplica a atividades e fontes estacionárias que emitem CO2. O projeto atual amplia para fontes móveis, ou seja, além de fontes estacionárias, como plantas de geração de energia, indústrias entre outros, inclui também fontes móveis. E isso abre várias dúvidas. Se aplica a frotas de veículos? Quais os limites dessa ampliação? O conceito é amplo e fica essa dúvida”, explica a advogada.
Para ela, o encaminhamento ao Senado dá a oportunidade de discutir melhor conceitos e pontos inovadores. “Podemos amadurecer as inserções trazidas pela Câmara, aperfeiçoar alguns pontos como os que discutimos acima”, diz.
Um ponto de atenção e preocupação para as empresas, segundo Morbach, é em relação à definição das multas. “Elas são altas, há pouca clareza sobre como elas serão definidas. Existe uma base de cálculo e uma limitação de 3% sobre o faturamento bruto que é bem alta. Esse ponto precisará ser discutido e aperfeiçoado porque o valor é alto.”
Luciana Gil, sócia da área ambiental do Bichara Advogados, também levanta o ponto do custo para as empresas. “Vai representar um custo com impacto significativo. Hoje não há obrigações, tampouco metas de emissões. Com a implementação do SBCE, as empresas deverão se adaptar para regular seus processos produtivos, monitorar/reduzir/compensar as suas emissões nos limites previstos na lei”, aponta.
Para a advogada, quem deve pagar, a princípio, essa conta serão os setores mais emissores, já contemplados no texto, como os de cimento, siderurgia e indústrias em geral, que emitem mais de 10 mil toneladas de gás carbônico equivalente por ano. “Eles serão impactados e levados a cumprir com as obrigações da nova lei, inclusive com limites de emissão e necessidade de compensação. Mas esse custo, diz, poderá acabar chegando ao consumidor final.
Na questão dos custos, Annie Groth, da Biofílica Ambipar, pontua que, apesar de multas e custos com conciliação – compra de cotas ou créditos de carbono – onerar as companhias, por outro lado, também incentiva quem fizer o dever de casa e reduzir as emissões.
“Há diversas formas de reduzir poluição, como consumir energia mais limpa, aprimorar sistemas internos para evitar desperdícios, e outras. E quem conseguir ficar abaixo do teto ainda pode vender no mercado suas cotas restantes e lucrar com isso. É um incentivo financeiro para as empresas reduzirem suas emissões”, explica.
Groth lembra ainda que os tetos de cada setor ainda não são conhecidos e só após os números serem definidos que será possível ter dimensão de quantas empresas estão desenquadradas do limite de 25 mil toneladas de CO2 por ano de emissões. “Dependendo do teto, tem chance de não pagar nem multa nem nada.”
Francisco Higuchi, CEO da Tero Carbon, certificadora brasileira de créditos e estoque de carbono, lembra que “inevitavelmente” as empresas deverão investir em inventários de emissões e nos créditos de compensação. “Mas o projeto de lei sugere incentivo, com abatimento em impostos como IPI e Cofins. Portanto, é possível que a balança seja positiva”, pontua.
Um ponto do novo texto que não estava contemplado na versão do Senado é a ampliação do escopo do mercado de carbono ao trazer, por exemplo, os projetos de REDD+ jurisdicionais à pauta. Os REDD+ jurisdicionais são aqueles projetos que permitem que os governos estaduais e federal tenham e administrem seus próprios mercados de crédito de carbono. Eles também são responsáveis pelos custos de preservação e restauração ambiental, assim como são os beneficiários das receitas provenientes da venda desses títulos.
Na Câmara, o relator do texto do projeto, Aliel Machado (PV-PR), queria estabelecer que os Estados só poderiam vender créditos de carbono gerados em terras públicas, mas governadores da Amazônia, os principais interessados nos projetos de REDD+ jurisdicionais, não concordaram e a votação chegou a ficar um tempo paralisada por causa deste impasse.
“O projeto de lei sofreu grande pressão de diversos atores e setores e, apesar do texto não ter a melhor redação e conceitos, ele trouxe de forma clara que deve existir harmonia e respeito aos diversos atores”, diz Janaína Dallan, CEO da Carbonext, desenvolvedora de projetos de crédito de carbono, ao se referir à individualidade e não sobreposição de projetos federais, estaduais, de entes privados e de comunidades tradicionais, regulados e voluntários. “Deve haver um alinhamento de contabilidade para o Brasil apresentar créditos de alta credibilidade sem que haja dupla contagem”, reitera.
O texto, segundo Dallan, “efetivamente” protege os projetos individuais do mercado voluntário, ao dar autonomia para o setor privado e as comunidades tradicionais desenvolverem seus projetos. Ela lembra que estes créditos devem ser descontados do cálculo dos projetos jurisdicionais. “É muito importante que os Estados tenham oportunidades de desenvolver projetos, de melhorar a qualidade de vida de populações que lá residem, ampliar sistemas de monitoramento, equiparar os órgãos de vigilância e, assim, gerar maior proteção para as florestas”, conclui a especialista.
A Carbonext faz parte da Aliança Brasil NBS, associação sem fins lucrativos cuja finalidade é promover o combate ao desmatamento e degradação florestal por meio de créditos de carbono. A entidade tem sido vocativa ao pleitear diferenciação e independência entre os projetos de geração de créditos públicos e regulado pelo PL e os projetos privados, cuja comercialização é feita no mercado voluntário.
Bittencourt, da WayCarbon, reforça que o PL indica claramente o direito à propriedade privada e mantém o direito daqueles que queiram desenvolver projetos de REDD+ privados em suas terras. “Eles deverão apenas informar ao governo para que tais terras não sejam contabilizadas duplamente em um projeto REDD jurisdicional em nível estadual”, diz.
Higuchi, da Tero Carbon, reitera que, mesmo que o desenvolvimento de projetos de geração de créditos de carbono em terras públicas parece ser uma boa iniciativa, “é preciso entender como será conduzido”. “Precisamos esperar mais detalhes.” Ainda não há previsão sobre quando o PL passará pelo Senado nem detalhes sobre sua regulamentação. Mas muitos já consideram que haverá modificações.
Yuri Rugai Marinho, sócio-diretor da ECCON Soluções Ambientais, é crítico ao dizer que, do ponto de vista dos instrumentos de conservação, a versão aprovada poderia ter sido melhor. “O Brasil é berço de projetos privados de REDD+ que, no texto atual, perdem importância em razão do texto do artigo 42 e seus parágrafos”. O trecho que faz referência determina que atividades de manutenção ou manejo florestal sustentável não podem gerar créditos de carbono. “Não há estímulo para novos projetos privados de REDD+, de maneira que, se o governo não criar projetos públicos dessa natureza, a conservação deixará de ser remunerada e pode dar lugar ao agronegócio, mineração etc..”
Isso se liga à exclusão do agro. Para Marinho, a conservação em áreas privadas não está sendo muito estimulada, o que significa que os proprietários dificilmente optarão pela conservação no momento de uma decisão econômica. Mas ele elogia a abertura de oportunidades para licitações públicas para outros agentes especializados desenvolverem projetos de REDD+ jurisdicional.
Morbach, da CCS Brasil, aponta ainda que a criação dos Certificados de Recebíveis de Créditos Ambientais (Cram), certificados de recebíveis futuros lastreados em créditos de carbono, é uma “inclusão super interessante”. “Não sei se dá pra dizer que é melhor ou pior. O que é possível dizer é que ele amplia o que originalmente tinha sido proposto, em pontos interessantes, mas essa ampliação demanda debate para não causar estranheza, além de aperfeiçoamento de possíveis inconsistências técnicas”, diz.
Natascha Trennepohl, Sócia do Trennepohl Advogados, CEO da consultoria de carbono Carbonn, ainda lembra que, dentre as emendas apresentadas ontem, foram incorporadas as sugestões de inclusão das atividades de reciclagem como aptas a gerarem créditos de carbono, a obrigação de compensar emissões veiculares, e a possibilidade de assentados em projetos de reforma agrária também poderem gerar créditos de carbono.
Com as mudanças, os olhos agora voltam ao Senado. “Diversos pleitos nossos não foram atendidos, mas a gente entende que, para acomodar Estados, governos e setor privado, não foi o pior cenário e muitas das regras e detalhamentos virão nas regulamentações que virão depois da aprovação do PL”, diz Dallan, da Carbonext. “O texto aprovado deve sofrer modificações no Senado para ajuste de conceitos e a gente vai utilizar desse tempo para mandar novamente sugestões de emenda”, comenta Dallan.
Fonte: Valor Econômico